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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Bruxaria, Magia e Xamanismo - parte 1 - por Nuvem que Passa


Xamanismo, Bruxaria, Magia. Estes três termos são muito usados hoje em dia e existe uma grande similitude entre as pessoas que se aproximam destes caminhos. Vamos refletir juntos sobre este tema começando pelo ato de falar, sobre o ato de trocar informações através de palavras.

Xamanismo é uma palavra. Ela indica, alude sobre algo, mas não é esse algo. Água é uma palavra.

A palavra água pode te fazer lembrar da substância em si, mas não pode mitigar sua sede. Assim como a lembrança mental da água e a imagem da mesma também não o podem fazê-lo.

Quando uso a palavra água a sua mente acessa memórias, experiências já vividas com esta substância. Ao especificar água quente limito o leque de opções. Água fria leva a outro tipo de lembranças.

Pense na água. Imagine a água. Visualize que bebes um copo de água. Agora, se quer mesmo estabelecer uma comunicação mais ampla entre nós, levanta e vai tomar um copo de água. Se fizeres isso vais notar como é totalmente diferente lidar com um conceito, como o da palavra água e tomar água de fato. Portanto o termo água alude a algo efetivo que existe, com o qual tu tens contato, mas não tem o mesmo valor de resolução.

Não mitigas a sede com palavras, só com a substância. Da mesma forma os termos Xamanismo, Bruxaria e Magia não podem ser completamente compreendidos só com abordagens teóricas.

Vamos aludir, vamos nos aproximar, vamos mesmo demonstrar certos fatos de tais práticas, mas note que a compreensão profunda só virá quando tu, que lês estas linhas, fores também alguém que sente a ARTE em tua essência.

Esta é uma abordagem que somente os praticantes podem contemplar plenamente. Porque, em primeira instância, estas três formas de caminhar na existência fazem parte de uma mesma faceta tradicional do conhecimento, a qual transcende toda e qualquer forma de conceitualização. Assim optamos por chamar este o “SABER DOS SABERES”, o qual inclui tudo aquilo que podemos conceber como ARTE.

A ARTE é pois Filosofia, Ciência e Mística. Arte em sua mais plena expressão. Durante nossa era decompusemos a abordagem da realidade nestas formas. Ou abordamos a realidade filosoficamente ou cientificamente, ou misticamente ou artisticamente.

Em resposta à extrema dependência de uma abordagem mística da realidade, típica de certos séculos anteriores, que em verdade é apenas ‘misticóide’, esta Era se esforça por ficar limitada ao que chamam de “concepção científica da realidade”. Insistem em tentar provar que campos como os fenômenos paranormais são ‘científicos’.

Mas a questão central é que, os paradigmas nos quais se apóiam para caracterizar algo como científico contradizem até mesmo as bases da própria noção de ciência, já que a busca de respostas verdadeiras deveria ser a premissa fundamental da ciência, ao invés da manutenção de uma ideologia dominante para manter sociedades inteiras servis.

O Xamanismo, a Magia e a Bruxaria foram perseguidas, e ainda são, em muitos setores desta sociedade que aí está. Vejam as campanhas constantes contra terreiros de Umbanda, Candomblé e movimentos Nova Era por parte dos segmentos mais fundamentalistas de certas religiões em franco crescimento. Estas perseguições são apenas uma das facetas desta luta contra toda forma de trabalho mágico não contemplado pelo paradigma vigente imposto sobre a sociedade.

Esta luta entre campos ideológicos se reflete também na chamada ciência acadêmica, na qual indivíduos com inflados egos influenciam o rumo das pesquisas e no conceituar do mundo, para que certos modelos da realidade não sejam de todo alterados.

O Xamanismo, a Magia e a Bruxaria são formas de abordar a realidade que têm sido perseguidas há tempos em diferentes civilizações. Por que tais caminhos despertam tanto medo? Observando com atenção notamos que sempre que se estabelece um regime absolutista, desejando impor sua vontade privada sobre a vontade coletiva, tais caminhos são os primeiros a serem perseguidos. Toda vez que o poder despótico se faz sentir, os caminhos citados são perseguidos. Os povos nativos continuam sendo oprimidos até hoje. Destruídos enquanto cultura e enquanto vidas, mortos em conflitos diversos.

A Magia e a Bruxaria ganharam espaço entre certas camadas sociais e acabaram fazendo uma lenta migração de volta ao sistema dominante, ressurgindo com força entre vários magistas e bruxos que vem alimentando a cultura oficial com obras nas quais narram suas aventuras e descobertas na vastidão de outras realidades que circundam a nossa.

Lendo os autores originais, e não aqueles que baseiam suas ‘descobertas’ apenas na leitura de outros, ou seja, aqueles que  empreendem uma maior aproximação da fonte a partir da qual tais informações emanam, vamos notar questionamentos profundos sobre a vida, a morte, a consciência, a realidade imediata, a existência de realidades outras que não esta, assim como outros seres habitando mundos ao redor deste. Seres alienígenas à nossa realidade porém presentes em nossa própria realidade mas não perceptíveis a nós. Muitos temas foram investigados por vários indivíduos, homens e mulheres que tiveram acesso a fragmentos de informações, outros à escolas autênticas possuidoras de elos com a ancestralidade da qual este SABER emana. Muitas linhagens diferentes foram contatadas por estas pessoas que tinham em si o ímpeto de aprender mais sobre os mistérios que nos circundam e a escrever sobre isso.

Upasika¹, Aleister Crowley, Therion²; Fernando Pessoa, na multiplicidade; mais recentemente Carlos Castañeda, também conhecido como Charles Spider; entre muitos foram sondar outras realidades e acabaram encontrando de fato abordagens da realidade completamente diferentes das que esperavam.

O Xamanismo, a Magia e a Bruxaria, tal qual são concebidos e praticados hoje, sofreram profunda influência destas pessoas, pois foram elas que fizeram as primeiras traduções dos conceitos ancestrais destes caminhos para a sintaxe da nossa cultura. Quando colocados na sintaxe da nossa cultura, tais informações adquirem mesmo um caráter de revelação.

Re-Vela. Indica, alude, mas também confunde, coloca o véu novamente, pois definir estes caminhos e falar sobre eles pode nos levar a realizarmos falsas associações, re-significações e interpretações a respeito destes caminhos de acordo com nossas presunções, e a partir daí, alienar ainda mais em vez de despertar. Tanto no Xamanismo, como na Magia como na Bruxaria a primeira premissa é que só pode trilhar estes caminhos Aquele que ‘É’. Em todas as obras produzidas sobre estes caminhos vamos perceber que, de forma declarada ou subliminar, o instrutor sempre começa guiando o(a) aprendiz a deixar de ser apenas uma resultante dos condicionamentos do meio, dos inúmeros fatores que afetaram sua existência até então, para somente assim estabelecer um ‘EU’ real.

Alguns lidam com uma viagem pelas esferas da Árvore da Vida e do Tarot para este trabalho, no qual o ser, que tal caminho trilha, lida com seus medos, condicionamentos, carências, vaidades e vai se reintegrando, resolvendo sua sombra, e, então, após atravessar o abismo no qual deve despir-se para tornar-se ‘si mesmo’, emerge como um novo ser. Aquele que ‘É’! Só então começa a magia. Antes havia apenas um agitar semiconsciente da luz astral, do grande mar de energia que nos circunda e gera, ao redor de nós, uma atmosfera psíquica que pode gerar fenômenos diversos, mas que é também uma grande ilusão, Maya, um mitote³.

Este fato é muito importante. Tanto no Xamanismo, como na Magia como na Bruxaria, o primeiro passo é deixar de meramente sobreviver para VIVER, deixar de reagir para AGIR.

Esse lembrar de si, esse resgatar a nós mesmos e ir além das ilusões que aí estão, é a condição básica para que haja Xamanismo, Magia ou Bruxaria.

Xamãs, Magistas e Bruxos(as) são homens e mulheres que antes de mais nada, ‘SÃO’. Para poderem operar efetivamente no domínio desses caminhos têm que ‘SER’, ou serão destruídos quando as fronteiras da realidade se expandirem. 

A VONTADE é o começo de tudo, a mais fundamental conquista que um(a) Xamã, um(a) Magista ou um(a) Bruxo(a) deve ter realizado para não ser destruído pelos poderes e esferas com as quais pretende interagir. VONTADE em um contexto diferente do comumente expresso. Não tem nada a ver com desejo, volição ou qualquer outra forma de expressão que conheçamos.

Tanto quem trilha o caminho do Xamanismo como da Magia como o da Bruxaria sabe que VONTADE aqui tem outro sentido, outro significado. É a forma pessoal que cada um tem de expressar um poder muito maior, que é a própria ‘VONTADE da Eternidade’ que nos circunda.

Só quem ‘É’ pode ter VONTADE. Este é um sentido que escapa a muitos leitores das obras de quem esteve estudando esses caminhos e sobre eles escreveu. 

Vejam Crowley: 

“Faze o que tu queres…”

Esse ‘Tu’ é um conceito complexo. Indica que existe alguém de fato, e não apenas um aglomerado de estilos de emocionar-se, raciocinar e reagir ao qual nos referimos como ‘eu’.

Lendo Erva do Diabo e Uma Estranha Realidade, milhares de pessoas pelo mundo ficam a vagar erraticamente ao se super estimularem com plantas de poder diversas, crendo que o ‘espírito da planta’ vai lhes revelar algo que não sabem. Mas o cerne abstrato do aprendizado ali era outro. Tudo ali estava sendo usado como meio de trabalho por alguém que tinha maestria na ARTE. Assim ficar preso em leituras literais de qualquer obra que toque a ARTE é como ser um fundamentalista e basear sua vida em interpretação literal de textos adulterados que foram escritos em outra cultura.

O que chamo atenção, é que, antes de atabalhoadamente irmos a definições e diferenças entre Xamanismo, Magia e Bruxaria temos que repensar nossos paradigmas. Nossas bases conceituais sobre as quais assentamos nossa compreensão de mundo. 

Uma condição fundamental é compreender que quando estamos falando de XAMANISMO, MAGIA e BRUXARIA no contexto dessas linhagens que tem de fato ligação com a ARTE, existem pontos muito interessantes de semelhança entre ambas que tem sido deixados de lado. Vamos a eles.

O primeiro deles é o fato que todo caminho que leva a ARTE começa por auxiliar o ser que trilha tal caminho a se desvencilhar do pesado passado que carrega consigo, da insana absorção em conceitos prontos e de condicionamentos estáticos que foram implantados em cada ser humano nesta Era de escravos em que vivemos.

Aqui tocamos em um ponto sensível. Todo sistema feitor de escravos sempre lutou arduamente para destruir tudo ligado ao Xamanismo, Magia e Bruxaria. Por quê? Por serem caminhos de LIBERDADE. Aqui temos outra definição importante. O Xamanismo, a Magia e Bruxaria sempre foram caminhos de homens e mulheres livres. Que alguns desses homens e mulheres tenham caído em formas de prisão muito mais sutis e perigosas que a prisão deste mundo ao tentarem se aproximar da ARTE é um fato. O qual alerta a todo praticante que arrogância e presunção são estilos de comportamento que nos dirigem diretamente para as iscas que existem no vasto mar que vamos descobrindo quando nos dedicamos a ARTE.

Tanto o Xamanismo como a Magia e a Bruxaria apresentam diversas formas de manifestação. Existem também muitas formas de cultos que nada têm a ver com a essência do Xamanismo, da Magia e da Bruxaria, mas que, ainda assim, se apresentam como tal.

Temos, no tocante da Bruxaria, o agravante de ter sido fortemente deturpada pelas falsas acusações e testemunhas sob o terror de tortura, ou mesmo sob a ameaça dessa. Criando fantasias sem fim que serviam bem aos propósitos dos que desejavam incitar o medo contra tais práticas e conhecimentos. Na Magia temos deturpações como ‘magia negra’. Criação também da Inquisição que ainda hoje assusta a tantos. No Xamanismo, temos um grande número de índios que imitaram formas de agir sem compreender a essência dos verdadeiros xamãs, e assim, repetem hoje ritos e formas, mas sem o poder que caracteriza toda ação de fato xamânica. Mas além destas deturpações temos o XAMANISMO de fato, a MAGIA de fato e a BRUXARIA de fato, sobre estas facetas da ARTE é que falamos aqui. 

Nuvem que Passa - 28/01/2001

Notas

¹ Upasika Kee Nanayon ou Kor Khao-suan-luang foi uma upāsikā (devota e seguidora autodidata não ordenada da tradição búdica theravada) tailandesa de Ratchaburi (1901 – 1978). Após sua aposentadoria em 1945, ela transformou sua casa em um centro de meditação com sua tia e seu tio. Suas palestras e poesias sobre o Dharma eram amplamente divulgadas. Tornou-se uma das professoras de meditação mais populares da Tailândia. Muitas de suas palestras foram traduzidas para o inglês por Thanissaro Bhikkhu, que a considera “indiscutivelmente a principal professora do Dharma na Tailândia do século XX”.

Upasika também é um dos termos que os Mestres ou Mahatmas usavam para referirem-se à H.P. Blavatsky. A influência de Blavatsky foi e é enorme para a cultura ocidental dedicada ao estudo das tradições antigas do Oriente. Fundadora da Sociedade Teosófica, escritora da obra "A Doutrina Secreta", dentre outras. Upasika = servidora, aquele que serve.

² Therion (thēríon) (grego: θηρίον, besta) é uma divindade encontrada no sistema místico de Thelema, que foi estabelecido em 1904 com “O Livro da Lei” escrito por Aleister Crowley.

³ Mitote, segundo Dom Miguel Ruiz, autor do livro "Os 4 Compromissos":

"Toda a sua mente é um nevoeiro que os toltecas chamam de mitote. Sua mente é um sonho em que mil pessoas conversam ao mesmo tempo, e ninguém entende o outro. Essa é a condição da mente humana — um grande mitote. Graças a ele, você não consegue enxergar o que realmente é. Na Índia, o mitote é chamado de maya, que significa “ilusão”. É a noção pessoal do “Eu sou”. Tudo em que você acredita sobre si mesmo, sobre o mundo, todos os conceitos e programas que você tem na mente, todos formam o mitote. Não conseguimos ver quem realmente somos; não conseguimos perceber que não somos livres."

⁴ É muito difícil compreender esse ponto relativo ao SER, pois como alguém que não é pode vir a entender o que É? A simplicidade das palavras aqui pode ser muito enganosa. Talvez uma história possa nos ajudar a entender esse ponto. A história está no último capítulo de Viagem a Ixtlan, trata-se do encontro de Dom Genaro, benfeitor xamânico de Carlos Castaneda, com o aliado, entidade de natureza inorgânica que auxilia o xamã em suas atividades. Para SER é necessário que haja em nós um centro de gravidade permanente, um núcleo ao redor do qual o SER possa se estabelecer e este é mesmo um dos objetivos do TRABALHO sobre si.



segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Há algum culto à divindade no Xamanismo Guerreiro?

- Há algum culto à divindade no Xamanismo Guerreiro?

- Não. Mas há um culto.

- O que se cultua no X. G.?

- A palavra culto talvez não seja a mais adequada pois está contaminada pela ideia devocional ao divino. Na origem da palavra culto temos a ideia de cultivo, cuidado, plantio. Nesse sentido específico o X. G. é um culto, pois o que se cultiva é o poder pessoal, o autodomínio, a saúde, a sobriedade, a impecabilidade. Não há adoração ao divino. A adoração é uma transferência de energia para o que se está adorando.

- Mas se reconhece a existência de algo divino, de superior, de seres divinos?

- Tudo isso tem um caráter religioso, devocional, mas há o reconhecimento de uma fonte da qual tudo emana. A partir de tal concepção não há e nem pode haver distinção entre superior e inferior, tais conceitos, dentro do X. G., são reflexos de nossa autoimportância. Se tudo emana de uma fonte como poderia existir algo superior ou inferior?

- Então no X. G. o ser humano é o centro do culto?

- Se entendermos que devemos cuidar de nossa própria energia e não cultuar a outrem isso é correto.

- Qual o objetivo de cuidar, cultuar, cultivar a própria energia?

- Isso é autoexplicativo, pois não há razão para não fazê-lo, não há sentido em dissipar a própria energia, contudo somos levados a tal através do imperativo biológico da reprodução da espécie e do condicionamento social baseado no sentimento de autoimportância.

- Mas e a busca da liberdade total, da liberdade de percepção?

- Essa é uma busca abstrata, mediata. O que está posto logo de cara para nós, e que é uma sensação física, corporal, perceptível e facilmente constatável pelo praticante, é o bem-estar que deriva do cultivo da energia pessoal.

- Isso de cultivar a própria energia não é egoísmo?

- Cultivar a energia tem como um dos pilares eliminar o egoísmo no sentido da autoimportância. O egoísmo drena a própria energia pois se baseia na autoimportância. Seres autoimportantes são por natureza carentes, demandam atenção, reverência, devoção, ficam ressentidos se não lhes dão o que acham que merecem. Já que falamos em "divindades" temos um exemplo de ser cheio de si no próprio deus tribal bíblico do antigo testamento, que tem como primeiro mandamento: amar a deus sobre todas as coisas. Tal mandamento na verdade é o primeiro mandamento da autoimportância, pois se assume a existência de algo superior a ser cultuado, ora isso é a ideologia de um predador.

- Devemos então renegar as ideias de religião, deus, bíblia e tudo o mais relativo a tais temas?

- Não, mas devemos estudar e compreender tais temas pois a compreensão nos permitirá perceber como funcionam as armadilhas do predador para nos manter cativos e assim podermos superá-las com elegância e inteligência. Nesse sentido o estudo é uma forma de disciplina mental. Se formos a fundo no sistema de crenças ao qual fomos condicionados podemos resgatar o nosso poder investido nesse mesmo sistema de crenças.

- Que tipo de estudo deve ser desenvolvido nessa direção? Teológico?

- O importante é que seja um estudo crítico, cético, de natureza acadêmica, com método, pois tal disciplina intelectual, usada, por exemplo, pelo nagual Carlos Castaneda e suas companheiras, ajudou-os em sua tarefa de libertar a percepção do sistema de crenças.

- O X. G. é um tipo de ateísmo?

- Tanto quanto era o ensinamento do Buda Sidarta Gautama, pois na verdade essas questões relativas ou não a existência de um deus não interessam ao X. G.

- O X. G. é uma doutrina?

- Não, uma doutrina envolve dogmas, certezas absolutas. A questão é que somos obrigados a usar palavras e a escrevê-las, elas ficam marcadas e exercem algum fascínio sobre a percepção, poderíamos simplesmente dizer, como já foi dito pelo velho nagual D. Juan Matus, de forma bastante pragmática e sóbria, que tudo que estamos aprendendo não é sobre Xamanismo Guerreiro, mas sim sobre como economizar energia para perceber algo que a percepção comum não consegue.





domingo, 14 de janeiro de 2024

Disciplina - parte 5 - Passes Mágicos



Os passes mágicos são um sistema de movimentos desenhados para alcançarmos silêncio interior e, portanto, uma manobra prática e efetiva contra a mente do predador. Foram descobertos por xamãs do México antigo em estados xamanísticos de consciência intensificada e foram organizados por Carlos Castaneda e seu grupo. 

São capazes de produzir um nível de energia e de habilidade incomuns no corpo do praticante, pois redistribuem e recanalizam a energia que perdemos com as preocupações e ansiedades cotidianas de volta para os nossos centros vitais. 

Esses xamãs tinham e tem um profundo foco na saúde e no bem-estar em níveis de excelência, e esses passes estão impregnados desse intento, por isso são chamados de mágicos, pois transformam nosso corpo de forma mágica.

***

O que é Tensegridade?

Tensegridade é a versão modernizada de alguns movimentos conhecidos como passes mágicos desenvolvidos por índios xamãs que moraram no México em épocas anteriores à Conquista Espanhola.


Épocas anteriores à Conquista Espanhola é um termo usado por Dom Juan, um índio mexicano xamã que apresentou Carlos Castaneda, Carol Tiggs, Florinda Donner-Grau e Taisha Abelar ao mundo cognitivo dos xamãs que viveram no México nos tempos antigos que, segundo Dom Juan, foram de 7000 a 10.000 anos atrás.


Dom Juan explicou a seus estudantes que aqueles xamãs descobriram que, através de práticas que ele mesmo não podia penetrar, é possível para os seres humanos perceber a energia diretamente como ela flui no universo. Em outras palavras, segundo Dom Juan, aqueles xamãs diziam que qualquer um de nos pode se livrar por um momento do nosso sistema de transformar o influxo de energia em informação sensorial própria ao tipo de organismo que somos. Os xamãs afirmam que, transformar o influxo de energia em informação sensorial cria um sistema de interpretação que transforma o fluxo de energia do universo no mundo da vida cotidiana que conhecemos.

Dom Juan explicou ainda que uma vez que os xamãs dos tempos antigos estabeleceram a validade da percepção direta de energia, que chamaram visão, eles a refinaram usando-a neles mesmos, isso quer dizer que eles percebiam uns aos outros, sempre que queriam, como um conglomerado de campos energéticos. Para aquele que “viam”, os seres humanos percebidos de tal modo eram como esferas luminosas gigantes. O tamanho de tais esferas luminosas é o comprimento dos braços abertos.

Quando os seres humanos são percebidos como conglomerados de campos energéticos, um ponto de luminosidade intensa pode ser percebido nas costas, na altura da clavícula a uma distância de um braço. Antigamente, as pessoas que vêem, que descobriram esse ponto de luminosidade, o chamavam de ponto de aglutinação, porque eles concluíram que é aí que a percepção se aglutina. Eles perceberam, auxiliados pela sua visão, que naquele ponto de luminosidade, o local que é homogêneo para a humanidade, convergem zilhões de campos energéticos na forma de filamentos luminosos que constituem o universo. Ao se convergirem para lá, eles se tornam informações sensoriais, que são utilizadas pelos seres humanos como organismos. Esta utilização da energia convertida em informação sensorial foi considerada pelos xamãs como um ato de magia pura...energia transformada pelo ponto de aglutinação em um mundo verdadeiro, global no qual os seres humanos como organismos podem viver e morrer. O ato de transformar o influxo de pura energia num mundo perceptível era atribuído pelos xamãs a um sistema de interpretação. Sua conclusão arrasadora, arrasadora para eles, é claro, e talvez para alguns de nós que temos a energia para ter atenção, era que o ponto de aglutinação não era unicamente o local onde a percepção é aglutinada pela transformação do influxo de energia pura em informação sensorial, mas é também o local onde ocorre a interpretação da informação sensorial.

A observação seguinte deles foi que esse ponto de aglutinação é deslocado de modo muito natural e não obstrutivo da sua posição habitual durante o sono. Eles descobriram que quanto maior a deslocação, mais estranhos os sonhos que acompanhavam. Destas experiências de ver, esses xamãs pularam para a ação pragmática de deslocar voluntariamente o ponto de aglutinação. Eles chamaram esses resultados concludentes a arte de sonhar.

Essa arte foi definida por aqueles xamãs como a utilização pragmática de sonhos comuns para criar uma entrada para outros mundos pelo ato de deslocar o ponto de aglutinação pela própria vontade e manter essa nova posição, também pela própria vontade. As observações desses xamãs ao praticar a arte de sonhar eram uma mistura de razão e de ver diretamente a energia do universo enquanto flui. Eles perceberam que na sua posição habitual, o ponto de aglutinação é o local para onde converge uma porção específica e minúscula dos filamentos de energia que formam o universo, mas se o ponto de aglutinação muda de local, dentro do ovo luminoso, uma porção minúscula diferente de campos energéticos se convergem nele, tendo como resultado um novo influxo de informação sensorial.: campos energéticos diferentes dos comuns se tornam informações sensoriais, e os campos energéticos diferentes são interpretados como um mundo diferente.

A arte de sonhar se tornou para aqueles xamãs a prática mais absorvente. Durante aquela prática, eles experimentaram estados não igualados de força física e bem-estar, e no seu esforço de duplicar esses estados nas horas de vigília descobriram que podiam repeti-los seguindo certos movimentos do corpo. Os esforços culminaram com a descoberta e desenvolvimento de grande número de tais movimentos, que são chamados de passes mágicos.

Os Passes Mágicos daqueles xamãs do antigo México se tornaram sua possessão mais preciosa. Eles os rodearam com rituais e mistérios e somente os ensinaram as pessoas que eles iniciavam em meio a um enorme segredo. Esta foi a maneira na qual Dom Juan Matus os ensinou a seus discípulos. Seus discípulos, sendo o último elo de sua linhagem chegaram a conclusão unânime de que qualquer outro segredo, sobre os passes mágicos seria contra o interesse que tinham em tornar o mundo de Dom Juan disponível aos outros homens. Eles decidiram, portanto, resgatar os passes mágicos de seu estado obscuro. Eles criaram desse modo a Tensegridade, que é um termo na arquitetura que significa a propriedade das estruturas esqueléticas que empregam elementos de tensão contínua e elementos de compressão descontínua de tal forma que cada elemento opera com o máximo de eficiência e economia. Este é o nome mais apropriado porque é uma mistura de dois termos: tensão e integridade, termos que conotam as duas forças motrizes dos passes mágicos.

Extraído de Readers of Infinity, de Carlos Castaneda, Número 1, Volume 1, 1996. Publicado por Cleargreen, Incorporated, (c) Copyright 1996, Laugan Productions, Incorporated. Todos os direitos reservados.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Disciplina - 2ª parte: Carlos Castaneda e Xamanismo

Está você a ponto de entrar em uma área do conhecimento humano que apresenta uma concepção do homem e do universo completamente diferente da que tradicionalmente você conhece e aceita.

A origem desses conhecimentos atribui-se aos Toltecas, um povo indígena que habitou a parte central do México em tempos muito remotos.

***Salvo engano, Dom Juan dá um sentido diferente ao termo Tolteca, um sentido bruxo e não antropológico, referindo-se ao mesmo como significando o "homem de conhecimento".

Esse povo indígena existiu talvez a centenas ou milhares de anos antes da chegada dos espanhóis à América.

Seu conhecimento era passado de geração à geração, entre pequenos grupos, formados por pessoas que devido a sua disciplina eram conhecidos como guerreiros.

Que por sua vez eram guiados neste conhecimento por um líder denominado de o Nagual.

Foi um indígena yaqui chamado Dom Juan Matus, que morava distintamente em Sonora, Oaxaca e Tula, quem revelou este conhecimento a um antropólogo chamado Carlos Castaneda.

Dom Juan era o líder, o nagual de sua geração de guerreiros.

Carlos Castaneda era o cientista social que a partir de seu conhecimento acadêmico, completamente ocidentalizado, acreditava inicialmente estar tratando com um indígena inculto e cheio de superstições.

Até que através da experiência direta dos conceitos toltecas compreende que tal conhecimento é tão real que decide revelá-lo.

Carlos Castaneda durante seu aprendizado com Dom Juan teve que passar por várias etapas que iam desde a negação completa de tais possibilidades até o pleno convencimento de que tais possibilidades eram fatos reais e verdadeiros.

Existem duas formas pelas quais Carlos Castaneda nos faz partícipes de seus descobrimentos. Através dos doze livros escritos ao longo de trinta anos e por meio de uma série de seminários onde são ensinados uma série de movimentos chamados de Tensegridade ou Passes Mágicos.

Nos primeiros seminários Carlos Castaneda denominou esta MUDANÇA que ele deu ao conhecimento tolteca como uma NOVA TRILHA.

Nessa NOVA TRILHA não tem nada a ver com a experimentação de plantas de poder. Os praticantes atuais devem adotar novos procedimentos, diferentes daqueles adotados em seus primeiros livros.

Este conhecimento poderia ser enquadrado como misterioso.

Alguns o chamariam de Xamanismo, outros de Bruxaria, porém talvez o conceito que nos poderia dar uma compreensão do mesmo, seria considerá-lo como o conhecimento das peculiaridades de nossa ATENÇÃO.

Nós não aproveitamos todo o potencial contido em nossa ATENÇÃO. O que chegamos a descobrir no fundo deste conhecimento é que nossa ATENÇÃO, pode abarcar mais do que imaginamos.

Existem muitos conceitos neste conhecimento. Podemos citar alguns como o diálogo interno enfocado na auto-reflexão do eu, o silêncio interno para combater essa reflexão, Espreita, "Sonho", outras realidades perceptivas, etc...

Porém o elemento comum que encontramos em todos os conceitos é o conceito de ATENÇÃO.

Nossa ATENÇÃO se mingua ou se enfraquece quando o processo mental que conhecemos como pensamentos, só a enfoca em determinados elementos de nossa forma de vida atual (a satisfação de nossos desejos e a contínua exaltação do ego).

Outro dos elementos que influem de maneira decisiva em nossa atual forma de perceber é que nossa ATENÇÃO requer mais ENERGIA para poder perceber outras realidades que existem e que são possíveis para o ser humano.

Talvez outra forma de descrever este conhecimento é que o conhecimento tolteca é a DISCIPLINA DA ATENÇÃO e seus praticantes são os guerreiros da ATENÇÃO.

Um ser humano com baixo nível de ATENÇÃO só pode estar enfocado na auto-reflexão, enquanto outro com maior nível de ATENÇÃO, pode enfocar esta em outras particularidades de sua existência.

O despertar das potencialidades de nossa ATENÇÃO pode nos assustar e não ser nada agradável para muitos.

Estamos educados em todo um conjunto de valores pré-estabelecidos e é normal que o desconhecido nos gere medo.

Podemos dizer que esse conhecimento permite DUAS alternativas aos que o sigam.

Primeiro: aquelas pessoas que sigam as premissas do "caminho do guerreiro", todo um conjunto de normas de conduta e pratiquem Tensegridade, podendo assim redistribuir e guardar energia, que lhes permitirá viver uma vida mais plena, mais produtiva, com mais paz interna. O seguir o caminho do guerreiro não implica em ter nenhum tipo de percepção desconhecida, pois por si mesmas não são suficientes.

Segundo: Para aqueles que se decidiram a ir mais além e explorar as peculiaridades de nossa ATENÇÃO e que, portanto, tem que encarar essa disciplina como uma forma de vida, onde é necessário empregar muitos esforços, como seguir "o caminho do guerreiro", realizar a recapitulação, executar os passes mágicos, guardar a energia sexual, guardar a energia que se gasta em nossas reações emocionais compulsivas, intentar permanentemente o silêncio interno e estar decididos a enfrentar o desconhecido.

Essa segunda alternativa requer disciplina total, uma tenacidade de aço, uma paciência sem fim e como Don Juan diria, "temple de acero". E mesmo que sigamos todos esses pré-requisitos não há garantia de que logremos algum tipo de percepção diferente das usuais. Talvez o ponto final para poder lograr a percepção de outras realidades é a IMPECABILIDADE que tem que ser uma indispensável norma de conduta nesse caminho.

Por último, esse caminho promove o bem-estar físico e mental. Se depois de conhecer um pouco ou muito deste conhecimento alguém sente que não deveria segui-lo, então que não o faça. O que menos necessita qualquer pessoa é uma obsessão que lhe produza problemas ou dano mental.

Texto originalmente em espanhol extraído de um site na internet de autor desconhecido.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

A Obra do Nagual, por Nuvem que passa


"A obra de Carlos Castañeda poder ser considerada como uma das obras mais interessantes e revolucionárias de nosso século. Ali conceitos completamente novos são apresentados, abordagens realmente novas da realidade e da nossa percepção das mesmas, são apresentadas lado a lado com conhecimentos similares a encontrados no Taoismo, certas linhas de budhismo, islamismo, hinduismo, cristianismo, judaísmo chamadas de "esotéricas". 

Existe um livro que tenta provar que Castaneda não viveu nenhuma das experiências que narra, o background espaço temporal que ele usa como contexto para expor os conhecimentos ali liberados pela primeira vez fora dos fechadíssimos, discretos e ciosos grupos que exploram há milênios esse mesmo saber. 

Para alguém que ensina a ausência de história pessoal nada mais coerente que ter um livro publicado por um estudioso sério desmentindo o fundo "pessoal" dos conhecimentos apresentados.

O Doutor Carlos Castañeda tenta mostrar ser a América possuidora de civilizações tão complexas como as que deixaram seus sinais em outras partes do Globo. Perguntas fundamentais que resultaram como resposta à Arte, à Magia ou à Ciência oficial, em outras partes do mundo, aqui geraram formas de magia e ciência muito complexas e a dizimação quase completa dos povos nativos, ainda em curso, diga-se de passagem, não quebrou esse elo de transmissão.

Uma leitura atenta dos 3 primeiros livros nos quais este relato é mais intenso, revela que as informações chave, como os 4 inimigos daquele(a) que busca o conhecimento, tem valor intrínseco, independente do contexto em que foram apresentadas. O valor do conhecimento expresso vai muito além do contexto onde ele está inserido. Se o Doutor Carlos Castañeda estava aprendendo com o velho índio no deserto mexicano ou no parque de sua cidade ou em seu quintal em Los Angeles não é este o ponto focal. 

Mas o que me interessa bastante é que numa era de paparazzis que são de uma forma ou de outra, corresponsáveis pela morte de uma princesa do Império Britânico, num mundo onde ninguém passa totalmente despercebido, num mundo cheio de recursos, alguém que passou os últimos anos de sua vida dando seminários para mais de 300 pessoas em cada um deles, nos EUA e na Europa, não tenha mais que algumas poucas e contraditórias fotos suas. Nesta era de total invasão da privacidade em nome dessa imprensa marrom que sustenta o esporte preferido, mexericos, desde que os hábitos das cortes parecem ter contaminado nossas vidas, nesta era da imagem, quase nenhuma foto.

E depois que ele "morreu" de câncer de fígado, como Krishnamurti antes dele, em prometeica herança, o seu livro, mais vendido por meses, foi um livro chamado "Passes Mágicos" - Um livro de posturas de poder, em fotos, para longevidade e bem estar, saúde e harmonia. 

Contradição, paradoxo, os que leem Castañeda são birutas mesmo, derreteram o cérebro brincando com plantas de poder? 

O que sinto após tornar a ler a obra inteira de uma vez em duas semanas, é que estamos diante de um tratado, algo que supera grande parte dos tratados de magia escrito no século passado, embora integre harmonicamente os conceitos apresentados por muitas escolas competentes. 

De alguma forma, nunca saberemos exatamente como, C. C., também conhecido como Joe, ou como Isidoro Baltazar ou outros nomes, entrou em contato com um saber ancestral. Por anos ele conviveu com homens e mulheres que eram herdeiros diretos desse saber. 

Ponto um: nenhum desses homens ou mulheres tinham a menor intenção de criar uma seita, uma religião ou fazer proselitismo de seu saber. Eles estavam apenas perpetuando uma linhagem. Estavam dando continuidade a uma magia antiga, a uma linhagem de poder e ser que começara em tempo indeterminado, na Era mítica. Cada um desses homens e mulheres afirmaram que só como mito poder-se-ia viver plenamente o caminho que eles apontavam ao relutante aprendiz. E por ser relutante, por ser difícil ele era bastante apreciado. Num caminho onde voluntários são vistos com reservas, pois voluntários costumam acreditar que sabem o que estão procurando e deturpam o conhecimento para adaptar-se a seus padrões preconcebidos. Pois para aqueles homens e mulheres, ao menos foram homens e mulheres um dia, voluntários raramente eram bem-vindos. Voluntários têm ideias muito preconcebidas e raramente aceitam mudar realmente, não aceitam a morte que toda iniciação propõe. 

E aprendendo de uma forma muito complexa começou Carlos Castañeda a aprender com aquele grupo. E nesse aprendizado se viu ludibriado várias vezes pelo velho índio que era estranhamente inteligente e sofisticado, coisas que o preconceito acadêmico raramente permite a um "nativo". Ludibriado, pois enquanto sua atenção estava fixa em algum aspecto que lhe era colocado a frente, a verdadeira ação de D. Juan Matus, também conhecido como John Michael Abelar e Mariano Aureliano, entre outros, enquanto o verdadeiro aprendizado acontecia disfarçadamente, evitando que sua mente racional e condicionada lutasse contra tal saber, deixando que ele sedimentasse como ganho efetivo. Aprendizado complexo, pois lidava também com um outro estado de consciência que antes dele nenhuma escola esotérica explicitou com tanta clareza. Todos sabemos que estar dentro de uma escola, estar ligado a um mestre ou mestra cria uma atmosfera psíquica própria, a energia de quem ensina, quando é real, permite um catalisar do processo de aprendizagem, baixa a energia de ativação necessária para se alcançar certos resultados. 

O método proposto pela escola Tolteca é muito sutil. Num nível alterado de consciência, num nível específico, onde a lembrança do dia a dia fica mais fraca, um nível que não é lembrado no dia a dia, neste nível ocorre outra parte do treinamento do aprendiz. Aqui ele recebe conhecimentos de grande poder, conhecimentos que estarão protegidos pelo esquecimento até que o aprendiz tenha energia suficiente para acessar tal nível por si. Por isso ler a obra de C.C. implica em compreender que tudo que é apresentado tem uma complexidade muito maior. 

C.C. começa seu caminho público quando aparece na mídia e vira guru alternativo, padrinho da nova Era, pela exaltação dos alucinógenos¹ como caminho para se tornar "um homem de conhecimento". Quando chega em Viagem a Ixtlan ele muda suas colocações revelando que os aspectos mais importantes do saber que estava recebendo não eram de forma alguma as viagens que tivera sob efeito das plantas de poder. 

E coloca que partes que havia anotado e deixado de lado se revelavam agora a espinha dorsal do sistema que começava a vislumbrar atrás dos atos aparentemente malucos de seu informante índio. Um velho que, exceto por um companheiro ainda mais louco, D. Genaro, que representava ser realmente demente e capaz de fazer coisas que estarreciam a mente linear, parecia viver isolado e fora do mundo em algum ponto do México, na região de Sonora. 

Quando C.C. lançou Viagem a Ixtlan, seu trabalho de mestrado, obteve uma resposta diferente da mídia.  Pouco a pouco os meios de comunicação passaram a desgostar de sua mensagem, o governo mexicano, conhecido por uma política sistemática de extermínio dos povos nativos, ainda hoje em andamento, vide Chiapas, ficou preocupado. Os povos nativos de todo o continente pela primeira vez tinham suas reais tradições trazidas à tona, quando digo reais digo suas tradições esotéricas, não o arremedo exterior que ficou reproduzido pelos sobreviventes, exilados de si mesmos, como os africanos vieram exilados de sua terra. E neste continente, por estarem exilados de si mesmos, não puderam levar nada, nada sobrou e o mito da puerilidade dos ritos e crenças dos nativos dessas terras ganhou força. 

Mas um grupo continuou ensinando seu aprendiz sem se ocupar disso. Escrever os livros era uma tarefa que C.C. recebera de seu mestre iniciador e cumpri-la era sua missão. Viagem a Ixtlan é um livro de acesso ao Xamanismo Guerreiro. E é importante notar que estamos falando de Xamanismo Guerreiro. O Xamanismo que sobreviveu graças aos iniciados dos clãs guerreiros que sobreviveram aos massacres, primeiro de outras tribos em guerras várias, como os Astecas já um século antes da Conquista, depois dos invasores de além do oceano, que vinham para dizimar e apagar da história da ancestral civilização que se manifestava em muitas formas por todo o continente. 

O fato é que aquele grupo vem da linhagem guerreira, por isso nada mais ilusório que querer fazer proselitismo das ideias de Carlos Castañeda. A obra é o relato de uma linhagem, um partilhar de conhecimentos úteis a quem segue um determinado caminho. Como todo caminho rumo ao despertar tem muitas ideias que servem a todos que desejam uma vida mais plena e forte, mas as nuances mais importantes do processo são algo específico para quem busca o despertar na forma que os(as) xamãs guerreiros(as) consideram a mais adequada para se tornar um ser pleno quando adentrarmos outros mundos. Entrar em outros mundos, atingir outros estados de consciência com autonomia e liberdade, não como servos de criaturas ancestrais que já vivem nessas outras esferas e tem a terrível mania de nos tomar sob sua tutela, a um pesado preço: nossa liberdade. 

É nesse contexto que C.C. aprende e certo dia caminhando numa cidade do interior do México tem outro "assalto a sua razão". O caipira, o índio eremita estava na cidade grande, de terno e gravata, meias combinando como D. Juan mesmo chama a atenção. E começa uma nova fase do aprendizado. Um conceito complexo é apresentado: Tonal e Nagual. E a obra ganha nova profundidade, conhecimentos complexos são apresentados e o inusitado também entra em cena. D. Juan Matus e D. Genaro desaparecem. 

Antes disso criam um drama iniciático catártico e como ato final Carlos Castaneda vai pular num precipício voluntariamente junto com outros aprendizes, corroborando em si e por si, os ensinamentos que havia recebido. O interessante é que em toda a história subsequente a trajetória iniciática fica mais forte e os conhecimentos que acompanham a narrativa são dos mais interessantes. Carlos Castaneda justifica a publicação de sua obra como resultado de um "acidente". D. Juan quando o encontrou pensou que ele, C.C., fosse um nagual, um homem dividido, alguém com um tipo de energia suficientemente elaborada para não apenas aprender a complexa arte da magia tolteca mas também ser um guia de um grupo de xamãs.

No Xamanismo Tolteca não há mestres, gurus ou nada disso, existem apenas homens e mulheres que têm suas posições no grupo, de acordo com seus "ventos" ou conformações energéticas. O líder do grupo é um homem ou mulher que tenha uma energia extra, chamados de Naguais. Um homem ou mulher nagual, graças a sua energia extra pode ajudar o grupo a ir além da vastidão da Eternidade, rumo aos reais objetivos dos "Nuevos Videntes": Liberdade Total! Mas com o passar do tempo descobriu que C.C.não tinha energia para continuar a linhagem². Daí que C.C. e suas companheiras, só citadas nos últimos livros, resolvem publicar relatos de toda sua busca e uma parte dos ensinamentos recebidos, já que fechavam a porta dessa linhagem e não queriam que tal saber simplesmente deixasse esse mundo. Se isto é exato, se de fato ocorreu assim ou é apenas uma esperta manobra do espreitador C.C. para apresentar sua obra ao mundo e escapar da condição de messias e guru que ainda assim lhe foi imputada, fica em segundo plano. O fato é que tivemos acesso a essa linhagem de conhecimento que apresenta conceitos complexos e diferentes, ancestrais em sua origem, originais em sua forma de colocar. 

A obra do nagual - parte 2

O Nagualismo trazido ao nosso conhecimento pela obra do antropólogo doutor Carlos Castaneda apresenta temas dos mais interessantes. 

C.C. após passar por experiências intensas, como o ataque que sofreu nas mãos da feiticeira Soledad, que poderia tê-lo matado, começa a resgatar outra dimensão do seu aprendizado, que havia estado guardada em outra frequência de seu ser. Como se fosse um aparelho de rádio, C.C. descobre que além das ondas AM onde vive, mundo que chama de real, há outro mundo operando em ondas de FM. Ele vai percebendo, a princípio desordenadamente depois, pouco a pouco com mais coerência que tudo que pensava compreender de seu treinamento é apenas a ponta de um iceberg de algo muito mais complexo. 

Começo por aqui este tema para deixar claro que a obra do Doutor Carlos Castañeda não pode ser lida pela metade. Só a leitura completa da obra , todos os volumes, permitem uma abordagem mais adequada do que ele pretende transmitir. Ele esteve exposto a magistrais manipuladores dos estados de consciência que um ser humano pode alcançar e cuidaram para que a parte mais profunda e complexa de seu aprendizado acontecesse neste outro nível, em FM.

Com o auxílio de "La Gorda" ele relembra fragmentos deste mundo paralelo no qual esteve vivendo, essa vida paralela onde aprendia com todo o "grupo do Nagual" composto por 16 pessoas, cada uma depositária de um aspecto do antigo saber Tolteca, herdado e mantido por todos esses milhares de anos, bem nas barbas da orgulhosa e prepotente civilização que pretendia escravizar corpos e almas para seus fins. Cada um dos 16 integrantes do grupo era expert num aspecto do saber dos antigos Toltecas, eram elementos vivos e dinâmicos de um mito, de uma tradição. Isto é um ponto dos mais importantes para quem estuda o caminho Tolteca. Ele não pode ser criado como nós entendemos criação, ele não pode ser forjado em nossas frágeis forjas. 

Embora a herança dos Toltecas, a Liberdade Total, possa ser requerida por muitos, embora não seja necessário estar num grupo nagualístico para reivindicar acesso a herança Tolteca, um grupo Tolteca tradicional está dentro de parâmetros próprios, não aleatórios e não acessíveis a uma manipulação artificial. Embora os conquistadores houvessem tentado exterminar a antiga tradição eles falharam. Os quatro ventos, as quatro direções do mundo, os quatro pilares, enfim, o cerne do poder dos antigos nativos permanecia (e permanece), sendo transmitido em palavras e atos de poder. 

C.C. se lembra de como foi apresentado a cada uma dessas pessoas, como foi testado e trabalhado para abandonar seu falso eu, essa multidão criada pelo Sistema. Abandonar o que acreditava ser para de fato mergulhar na essência perceptiva que era e que poderia desenvolver a tal ponto que poderia ao final, transcender o apelo de morrer e entrar num estado alternativo de continuidade. 

D. Juan Matus, Genaro, Silvio Manuel, Vicente. 

Quatro homens que herdam aspectos do saber Tolteca e o ensinam a C.C. Silvio Manoel, mestre do Intento, poderoso e assustador feiticeiro no princípio para o ainda imaturo C.C. mas que vai se revelar um excelente dançarino, verdadeiro pé de valsa que ensina as companheiras de C.C., já de um grupo diferente do que é citado nos livros até então, a dançarem "a dança do intento", onde(no qual) os passes mágicos da Tensegridade, exercícios de movimento para liberar e fluir a energia em nós, são associados a dança gerando movimentos de grande poder. 

O mundo onde C.C. se vê inserido é complexo e não podemos querer encontrar aí uma textura comum a nossa "realidade" pois, embora material, este mundo está noutra camada da cebola, muito perto desta, é verdade, mas ainda assim distinto. Os conceitos que C.C. recebe de seus iniciadores e iniciadoras vem da ancestral civilização que existiu na região onde hoje estende-se o estado mexicano e algumas outras republicas sulamericanas, mais um pedaço que hoje está nas mãos dos EUA. Esta civilização atingiu seu ápice em algum momento que situa-se há aproximadamente 4000 anos de nosso tempo. Então, algo ocorreu e eles e elas se foram, para alhures. 

Os que ficaram reorganizaram o que restou desse saber e surgiu um segundo ciclo civilizatório com o saber herdado, uma Era de Prata, se chamarmos a Era do auge deste poder de Era de Ouro. Mas então chegaram os primeiros povos conquistadores. Outros povos nativos que vinham com algo diferente em sua mente. Eles só captavam AM não eram mais capazes de sintonizar em FM. Este limite era também uma proteção. Quando poderosos feiticeiros convocavam seus "aliados" e "animais de poder" muitas vezes nada conseguiam, apenas uma flechada ou bordunada e eram mortos. Muitos foram mortos e a civilização mágica caiu. Alguns poucos sobreviveram e em seu refúgio começaram a estudar porque eles haviam conseguido sobreviver e outros não. Por que a magia deles funcionara e a de tantos outros não. 

A primeira coisa que descobriram é que o que consideravam ser o plano "espiritual", um plano superior e mais forte que este era na realidade outra face da moeda, mais vasto é verdade, mas não superior. E que a maioria dos sobreviventes era do clã guerreiro, que ainda se dedicava às práticas físicas e aos trabalhos corporais, revelando que o poder a mais que tinham, o fator determinante para a sua sobrevivência, foi o poder do corpo. 

Este ponto foi fundamental para seus novos estudos, começaram a trabalhar algumas questões antigas e descobriram que resolver este mundo antes de mergulhar na eternidade é gerar condições de energia para evitar se diluir na amplitude da eternidade. Aí começaram um novo caminho, com uma profunda crítica aos hábitos de seus antepassados,  que não foram suficientes para mantê-los vivos, algo fundamental. Quando estavam no auge desse processo, duzentos anos aproximadamente após a queda de uma porção significativa das aldeias ainda resistentes ao domínio dos Astecas chegaram os invasores iberos, estes sim bárbaros e tirânicos. Sob esta condição de profunda opressão os sobreviventes forjaram seu conhecimento, exigente, disciplinado, guerreiro.

Data: Ter Mai 2, 2000 8:27 am

A Obra do nagual 3

A partir de agora o texto só vai interessar ou mesmo ser realmente compreendido aos que estudam a obra do novo nagual. O trabalho que C.C. tem em sistematizar a experiência pela qual passou e colocá-la em palavras é em si mesmo uma das mais complexas abordagens antropológicas de uma civilização em tudo e por tudo alienígena à atual. 

Culturalmente alienígena, vejam bem. 

C.C. se torna praticante, mas não deixa de ser um homem racional do ocidente, que busca explicar, que busca sistematizar o saber que lhe está sendo apresentado. Ele aplica as ferramentas cognitivas e os novos modelos de realidade que lhe são demonstrados junto com a nova "descrição de mundo" que lhe é apresentada nas questões mais fortes de nosso tempo e traz uma sutileza de abordagem da realidade na qual estamos inseridos, que distingue sua obra. 

Ele mostra que tudo é Trabalho, que nada vem de graça (Nada neste mundo é um presente. O que tiver de ser aprendido será aprendido da maneira mais dura, em Roda do Tempo, de Carlos Castaneda.). Vai concordar com Gurdjieff e outros que já haviam dito que os planos da Eternidade para o ser humano nada tem que o permita se considerar "eleito", "favorecido". O ser humano tem uma função cósmica. Ao nascer ganha a consciência. Durante a vida desenvolve e matura essa consciência. Para ao final, a força motriz e original da existência, chamada Águia ou mar escuro da consciência, receba de volta essa consciência enriquecida, imediatamente após a morte ou algum tempo depois, pois a consciência pode sobreviver em várias formas nos muitos mundos que existem paralelos a esse. 

O forte das descobertas dos Toltecas é que existe um caminho alternativo. Que existe uma chance que é apresentada de tal forma que não vamos ler abordagem equivalente em nenhuma outra obra apresentada no ocidente como reveladora da sabedoria ancestral. 

O ser humano pode, a partir de certas práticas, no decorrer de sua vida, escapar dessa dissolução e entrar num estado alternativo de consciência que é quase uma eternidade, embora ainda aqui, fique claro que há um limite. 

Esta abordagem muda toda uma concepção muito em voga nos meios esotéricos. Vidas após vidas para evoluir, para chegar a algum lugar. 

O Xamanismo Guerreiro dos Toltecas afasta toda essa ideia e coloca essa vida como única, como a mais importante e o campo onde a batalha contra nossos oponentes devem ser travadas. 

Quem são esses oponentes? 

Demônios, seres perigosos de outros mundos? 

Os mais perigosos estão em nós, são eles que podem abrir a porta da fortaleza quando o exterior tenta atacar. Se eles forem vencidos, os exteriores perdem seu poder. Aos que buscam o conhecimento quatro já foram apresentados: 

O medo, que paralisa, a clareza que cega, que gera a arrogância de tudo saber, esquecendo que num mundo em expansão o aprendizado é constante, o poder que fascina e aprisiona criando marionetes que se julgam entes poderosos quando na realidade servem os que julgam dominar e a velhice, compreendida como a incapacidade de pôr em atos o que sabemos

São inimigos constantes, nunca totalmente vencidos, sempre prontos a voltar e tomar o controle da situação. 

A importância pessoal é apontada como sua principal arma. 

Há uma estratégia fundamental nesta luta: Desmontar as rotinas da vida, para estar atento a cada momento, sem entrar no "piloto automático". 

Apagar pouco a pouco a história pessoal. 

Essas são as práticas mágicas ensinadas ao aprendiz. E embora pareçam a alguns tolas, quem ousa realizá-las compreenderá que esteve tecendo sua capa mágica, que esteve forjando sua arma mágica, que se chamará Implacabilidade e também esteve trabalhando seu escudo, a ausência de importância pessoal, que tem sua chave na ausência de piedade por si mesmo.

Quando a estratégia da ação abrange o ser implacável, paciente, astuto e gentil, sabe o aprendiz que chegou num ponto decisivo. 

Sua energia acumulada expulsa sua percepção da condição "normal" que até então era mantida. 

Surge um desassossego.

O mundo não é o mesmo, não é mais satisfatório, há algo que te chama além. O chamado do infinito tem vários nomes em cada cultura , mas o fato é que quem já o ouviu nunca mais irá ficar tranquilo se ceder a mediocridade de uma vida conformada ao cotidiano. 

O chamado do infinito tem a estranha habilidade de despertar em nós um senso crítico interior que sempre nos dirá, quer queiramos saber ou não, se continuamos fazendo do dom da vida um caminho para a liberdade ou se voltamos e cedemos e nos vendemos por algum preço ou conforto, ao sistema, à "Matrix".

C.C. percebe que foi isso que aprendeu e aprende que seu campo de batalha era o mundo das cidades, os lugares onde ia, onde estudava, era ali que deveria aprender a aplicar tudo que aprendeu e atingir a condição singular, onde tudo que havia herdado lhe ajudaria a ser ele mesmo, um evento conectado ao infinito, mas único. 

Como um vetor resultante que subitamente deixa de ser apenas o resultado de todas as forças exercidas sobre o móvel, mas se torna uma força ele mesmo, uma força nascida de si mesmo, uma vontade plena. 

C.C. experimenta muitas possibilidades de aglutinar mundos. Vai a muitos lugares diferentes e explora o mistério do ponto de aglutinação, conhecimento de um ineditismo ímpar. Não há conceito similar a esse em outras obras e cito isso aqui para que todos percebam que estamos diante de um conceito "novo", algo raro nessa era de reedições e releituras. 

O ponto de aglutinação será nosso próximo tema.

Nuvem que Passa

Notas

¹ O termo alucinógeno não é adequado, pois não se trata de alucinações, mas de estado alterados de consciência nos quais pode-se interagir com outras realidades de uma forma funcional e pragmática na busca por conhecimento e energia. Uma alternativa poderia ser o termo enteógeno, que nos remete a uma jornada interior pela qual exploramos aspectos mais vastos de nosso ser envolvendo outros aspectos da consciência.

² Ver sobre o regulamento do nagual de três pontas.



Sobre os Naguais de Três Pontas, por Armando Torres

"A regra é final, mas seu desenho e conformação estão em constante evolução. Só que, ao contrário do que opinam os evolucionistas, que vêm nas adaptações da vida a acumulação de mutações genéticas por um acaso, os videntes sabem que não existe casualidade na regra. Eles veem como um comando da águia, na forma de uma onda de energia, sacode de vez em quando as linhagens de poder, produzindo novas fases na bruxaria.

"Um modo mais exato de referir-se a isto, é supondo que todas as variantes possíveis da regra estão contidas em uma matriz prévia, e o que vai mudando com o tempo é o grau de conhecimento que têm os bruxos dessa totalidade e a ênfase que fazem sobre certas porções. Tais períodos de mudança são cíclicos e são representados pelo número três".

"Por que três?"

“Porque os antigos toltecas associavam o numero três com o dinamismo e a renovação. Eles descobriram que as formações ternárias anunciam mudanças inesperadas”.

"A regra dispõe que, de vez em quando, apareça nas linhagens um tipo especial de nagual cuja energia não é quaternária, mas que tem só três compartimentos. Os videntes os chamam de 'naguais de três pontas".

Perguntei em que estes se diferiam dos outros.

(Carlos Castaneda) Respondeu:

“Sua energia é volátil, sempre estão em movimento, por isso lhes custa trabalho acumular poder. Do ponto de vista da linhagem, sua composição é defeituosa, não chegam a ser verdadeiros naguais. Em compensação, carecem da timidez e a reserva que caracterizam os naguais clássicos, e eles possuem uma capacidade incomum para improvisar e comunicar”.

“Pode-se dizer que os naguais de três pontas são como o pássaro cuco, que é incubado no ninho alheio. São oportunistas, mas necessários. Ao contrário dos naguais de quatro pontas, cuja liberdade é passar despercebidos, os de três pontas são personalidades públicas. Divulgam os segredos e propiciam a fragmentação do conhecimento, mas sem eles as linhagens de poder teriam se extinguido há muito tempo atrás”.

“Entre os novos videntes, a regra é que um nagual deixe como descendência um novo grupo. Alguns, por seus enormes excessos de energia, podem ajudar a organizar uma segunda ou terceira geração de videntes. Por exemplo, o nagual Elias Ulloa viveu o bastante para criar a partida de seu sucessor e influenciar a seguinte. Mas isso não significou que a linhagem se bifurcasse; todos esses grupos fazem parte da mesma linha de transmissão”.

"Por outro lado, ao nagual de três pontas está facultado transmitir seu conhecimento em forma radial, o que implica na diversificação das linhagens. Seus ovos luminosos exercem um efeito de desintegração sobre o grupo que rompe a estrutura linear de transmissão e fomenta nos guerreiros um desejo de mudança e ação, e uma disposição ativa a se envolver com seus semelhantes".

"Isso foi o que se passou com você?"

"Com certeza. Devido à minha disposição luminosa, eu não tenho preocupação em deixar focos de conhecimento onde queira que vá. Eu sei que preciso de uma quantidade enorme de energia para cumprir com minha tarefa, e que só posso obtê-la das massas. Por isso eu estou disposto a difundir o conhecimento e a transformar e redefinir os paradigmas".

"Como você sabe, meu mestre entrou em contato com a regra para o nagual de três pontas quando tentou analisar certas anomalias dentro do novo grupo. Aparentemente, eu não sintonizava com o resto dos aprendizes. Então ele me dedicou bastante atenção para ver que eu mascarava minha configuração energética".

"Quer dizer que o VER de don Juan estava equivocado?"

“Claro que não! O que se confundiu foi o seu olhar. VER é a forma final da percepção; ali não há aparências, assim não é possível se enganar. Porém, devido à pressão que ele exerceu sobre mim durante anos, minha energia lutou para amoldar-se à sua. Isso é comum entre os aprendizes. Como ele estava dividido em quatro compartimentos, eu também comecei a manifestar em minhas ações uma carga energética similar”.

"Quando eu consegui sair o suficiente de sua influência (coisa que me tomou quase dez anos de trabalho árduo), ambos descobrimos algo assombroso: minha luminosidade só tinha três compartimentos; não correspondia a uma pessoa comum que só tem dois, mas tampouco a de um 
nagual. Este descobrimento criou uma grande comoção no grupo de videntes, já que todos pressagiaram uma mudança profunda para a linhagem.

“Então Don Juan recorreu à tradição dos seus antecessores e desempoeirou um aspecto esquecido da regra. Disse que a escolha de um nagual de nenhuma maneira pode ser considerada como um capricho pessoal, já que em todas as épocas é o espírito quem escolhe o sucessor de uma linhagem. Portanto, minha anomalia energética era parte de um comando. Diante de minhas urgentes perguntas, ele me assegurou que, a seu devido tempo, um mensageiro me explicaria a função de minha presença como nagual de três pontas”.

“Anos mais tarde, em uma ocasião em que eu visitava uma das salas do Museu Nacional de Antropologia e História, observei um indígena vestido à moda tarahumara que parecia ter o maior interesse por uma das peças que ali se exibiam. Dava-lhe voltas, examinando-a por todos os lados e demonstrava uma concentração tão absoluta que despertou minha curiosidade e então me aproximei para olhar”.

"Ao avistar-me, o homem dirigiu-me a palavra e começou a explicar-me o significado de um conjunto de desenhos cuidadosamente esculpido sobre a pedra. Depois então, enquanto eu meditava sobre o que ele tinha me falado, eu lembrei da promessa de don Juan e percebi que aquele homem tinha sido enviado pelo espírito para transmitir-me a porção da regra do nagual de três pontas".

"E o que diz essa porção?"

“Afirma que, assim como um grupo tem uma matriz de energia de número dezessete (dois naguais, quatro ensonhadoras, quatro espreitadoras, quatro guerreiros e três mensageiros), a linhagem formada por uma sucessão de grupos também tem uma estrutura de poder, de número cinqüenta e dois. A águia ordenou que cada cinqüenta e duas gerações de naguais de quatro pontas apareça um nagual de três pontas que sirva de ação catártica para a propagação de novas linhagens quaternárias”.

"Também diz a regra que os naguais de três pontas são destruidores da ordem estabelecida, porque sua natureza não é nem criativa nem provedora, e eles têm a tendência de escravizar a todos os que o cercam. Acrescenta que para alcançar a liberdade estes naguais devem fazê-lo sozinhos, porque sua energia não está sintonizada para guiar grupos de guerreiros.

“Como tudo no âmbito da energia, o bloco de cinquenta e duas gerações se divide em duas partes; as primeiras vinte e seis são de expansão e criação de novas linhas, as restantes estão orientadas à conservação e ao isolamento. Esse padrão de comportamento vem se repetindo milênio após milênio, é dessa forma que os bruxos sabem que faz parte da regra”.

"Como resultado das atividades de um nagual de três pontas, o conhecimento se massifica e se formam novas células de naguais de quatro pontas. A partir dali, as linhagens retomam a tradição de transmitir o conhecimento de forma linear".

"A cada quanto tempo aparecem os naguais de três pontas?"

"Aproximadamente uma vez por milênio. Essa é a idade da linhagem à qual eu pertenço".

sábado, 9 de dezembro de 2023

O bruxo, homem só e sem pátria


Entrevista com Carlos Castaneda publicada em 1976
Fonte: Revista Veja nº356 -1976


Após quinze anos de lições, o brasileiro, talvez peruano ou americano, aprendeu a não ter biografia nem raízes.

Desde que começou a relatar em livros seus encontros com Don Juan, que remontam a 1960, Carlos César Aranha Castaneda transformou-se na mais invisível e impalpável personalidade literária da atualidade. Fragmentos incompletos de sua biografia apareceram nas duas únicas publicações a que concedeu entrevista, as revistas Time e Psychology Today, não se deixou fotografar nos últimos dez anos e não se preocupou em esclarecer algumas dúvidas cruciais. Assim, ele teria nascido no interior de São Paulo, no dia de natal de 1935, segundo disse ao Time. Mas, de acordo com a revista, o nascimento de deu dez anos antes numa cidade do Peru.
 
Comunicado desta descoberta, Castaneda reagiu de maneira impecável para um aprendiz de feiticeiro que aspira apagar sua identidade pessoal: "Estas estatísticas não significam nada. Importante o que nós somos, não o que éramos". Assim, com essa nacionalidade incerta e com uma idade que caminharia para os 40 ou 50 anos, embora certamente aparentasse menos, os únicos sinas da existência terrestre de Castaneda eram um Volkswagen e duas casas de sua propriedade, na Califórnia. No começo do ano passado, o estudante brasileiro Luiz André Kossobudzki, então bolsista de educação na Universidade da Califórnia (UCLA), encontrou-o num jantar beneficiente ao lado de personalidades literárias "normais", como Irving Stone e Irving Wallace. Quinze meses depois, no fim de março último, recebeu de Castaneda os negativos das fotos que o autor tirara no México, e que VEJA publica junto com esta entrevista exclusiva, à qual o entrevistado impôs a condição de que deveria ser publicada no Brasil antes de qualquer outro país. Kossobudzki recorda os seus encontros:

"Eu, minha mulher e mais quatro casais de bolsistas estrangeiros éramos talvez os únicos convidados ao jantar que não tínhamos os nomes gravados em alguma placa de honra. 

Tentamos, sem conseguir, um lugar na mesa de Castaneda, mas depois do jantar ele mesmo veio até nós. Disse-lhe logo que não acreditava ser ele brasileiro. Começamos a falar em inglês, mas logo depois ele se dirigiu até nós com lusitana fluência (inclusive sotaque) e afirmou ter nascido no interior do estado de São Paulo, numa cidade do vale do Paraíba, e que passara parte de sua infância em Juqueri* .Combinamos então nos encontrar novamente para uma feijoada, mas Castaneda desapareceu por vários meses. Um telefonema do seu agente literário informou que ele ainda estava interessado em me ver. 

Finalmente, conversamos três vezes, uma na minha casa e outras duas no campus da UCLA, onde ele trabalha de catorze a dezoito horas diariamente, em suas pesquisas sobre ético-hermenêutica (estudos da interpretação perceptiva de diferentes grupos étnicos). Castaneda aparenta ter 35 anos, 1,70 metros de altura e uns 70 quilos. Fisicamente, passaria por caboclo mato-grossense ou mesmo nordestino".

*Não existe nenhum município paulista com esse nome. Juqueri, no entanto, é o nome de um estabelecimento para doentes mentais no município de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, que costuma ser confundido com o nome do hospital. Juquiri é o nome antigo do município de Mairiporã, também na Grande São Paulo.

Aprendendo a viver com a bruxaria
 
VEJA - Quando se lê sobre Don Juan, tem-se a impressão que ele é um homem pobre e com um vasto conhecimento da vida. O senhor poderia falar de sua surpresa ao encontrá-lo de terno em "Porta para o Infinito"?
 
CASTANEDA - Tremi de medo, pois estava acostumado a vê-lo somente em roupas de campo. Isto ocorreu na fase final dos ensinamentos e tinha uma razão de ser. Don Juan revelou-me que era proprietário de diversas ações na Bolsa de Valores, e tenho quase certeza que se ele fosse um homem tipicamente ocidental estaria vivendo em um apartamento de cobertura no centro de Nova York. Finalmente aprendi que as duas realidades poderiam ser divididas no que Don Juan denominava tonal (consciente) e nagual (que não se fala). Na realidade do consenso social, o bruxo, o homem de conhecimento, é um perfeito "tonal" - um homem do seu tempo, atual, que usa o mundo da melhor forma possível. Nós usamos história como uma forma de recapturar o mundo passado e planejar para o futuro. Para o bruxo, passado é passado e não existe história pessoal nem coletiva.

 VEJA - O principal de seu encontro com Don Juan está escrito no livro "The teachings of Don Juan"(na versão brasileira, a Erva do Diabo"), mas em lugar nenhum existe menção de exatamente onde estiveram. Seria possível uma descrição mais detalhada do local?
 
CASTANEDA - Na fronteira entre os Estados da Califórnia (Estados Unidos) e Sonora (México) existe uma cidade chamada Nogales. Partindo de Nogales, a rodovia principal passa pela cidade de Hermosillo, capital de Sonora, pela cidade de Guayamas e finalmente cruza a Estácion de Vicam. A oeste da Estação de Vicam, em direção ao Pacífico, encontra-se a cidade de Vicam, habitada em sua maioria por índios yaquis. Vicam é o local onde pela primeira vez encontrei Don Juan. Perto de lá obtive os ensinamentos.

 VEJA - Para não tirar a liberdade de Don Juan, até hoje o senhor não havia revelado este local. Como agora se sente livre em descrevê-lo com exatidão?
 
CASTANEDA - Porque agora ninguém conseguiria achar Don Juan; ele não está mais por lá, e Don Genaro também sumiu das montanhas do México Central (Sierra Madre Ocidental). Não existe jeito nenhum de encontrá-los. Don Juan me mostrou e ensinou tudo o que ele podia e por isso não há necessidade de que ele permaneça à minha disposição. Da mesma forma, você sabe que se quiser me encontrar é só ir até a UCLA, deixar um recado ou me procurar na biblioteca de pesquisas. Mas, se eu deixar de vir à UCLA, você não terá a mínima ideia de onde me encontrar. Como Don Juan, procuro viver como feiticeiro.

 VEJA - Muitas pessoas, eu inclusive, encontram dificuldades em aceitar factualmente as descrições dos ensinamentos de Don Juan. O senhor se preocupa com o fato de as pessoas reagirem dessa forma?
 
CASTANEDA - Não, porque não dou ênfase na importância de minha pessoa, este é um ponto crucial dos ensinamentos que recebi de Don Juan. Raramente converso com alguém, e quando converso é face a face. Nada de gravadores ou fotografias, que trariam peso sobre a minha pessoa. Além de ferir uma das premissas básicas de feitiçaria e bruxaria, eu estaria tolhendo minha própria liberdade. Quando enfatizo a minha pessoa, estou me tachando a mim mesmo, estou colocando nas minhas costas um peso que vai além das minhas possibilidades de carregá-lo. Colocar tal peso nas costas é dar uma enorme importância à minha própria pessoa. Durante os ensinamentos, Don Juan fazia esboços na areia do deserto com o dedão do pé e preenchia os círculos com verbosidade. Ele dizia que "cargase a uno mismo" conduz a pessoa a um senso "importância personal" que combinados não permitem "acciones" por parte da pessoa. Quanto mais peso as pessoas acumulam, mais importantes elas se sentem, e menos ações elas executam.

 VEJA - Por que então publicou seus livros?
 
CASTANEDA - Porque esta era a minha tarefa. O bruxo cumpre tarefas que são colocadas em lugar do peso sobre si mesmo e da importância pessoal. Meu trabalho não é feito de erudição, mas uma recoleção da vida que Don Juan colocou em seus ensinamentos. O bruxo cumpre as tarefas que lhe dão com satisfação. Ele as cumpre sem esperar por reconhecimento da sociedade ou coisa que o valha, o que seria o "carregar-se a si mesmo" exercitado pelo erudito, com o objetivo de obter importância pessoal, o que não é meu caso. Por exemplo, se esta entrevista for tomada como um ato de bruxaria, ela se torna uma tarefa a ser cumprida.
 
VEJA - Esta entrevista, seu trabalho, sua obra, e mesmo o fato de trocarmos idéias por várias horas, tem um efeito que me parece ir além do simples cumprimento de tarefas. Elas lhe trazem satisfação, caso contrário não as faria. Além do mais, o senhor espera que sua mensagem, os ensinamentos de Don Juan, tenham um impacto sobre público. Não seria este o caso de cumprir tarefas e esperar pelo reconhecimento da sociedade?
 
CASTANEDA - Eu cumpro minhas tarefas tão fluidamente que elas não me afetam em termos de auto-importância, mas sim em termos de como vivo minha vida. Conheço dúzias de "professores" que se colocam numa torre de marfim de conhecimento: eles sabem tudo, e comandam o espetáculo para as galerias; quanto mais aclamados, ou quanto mais reconhecimento eles recebem, mais auto-importantes se sentem, mas esta mesma auto-importância se torna peso, a cruz a ser carregada, e eles como pessoas não são nada. O trabalho as afeta em termos de auto-importância, mas não em termos de vida pessoal. A mim o trabalho afeta em termos de vida pessoal, mas não de auto-importância. Don Juan me alertou e aconselhou que nunca me tornasse um pavão, "pavo real", que é o resultado à ênfase da importância pessoal. Quanto menos a pessoa pensa e "pseudo-age" em termos de auto-importância ela se torna mais completa. E quanto mais auto-importante se sente, mais incompleta se torna. O ser incompleto nasce da incessante procura por reconhecimento social.
 
VEJA - Mas se a pessoa age, não estaria automaticamente à procura de auto-reconhecimento?
 
CASTANEDA - Não, se estiver agindo como um bruxo. O bruxo vive a vida por si e para si e não para as galerias. Ele não se deixa influenciar pelas reações de consenso social, pois não age em termos de auto-importância. Ele sabe "parar o mundo", ou melhor, ele tem a capacidade de "não fazer".

O "mundo parado", por um passe de mágica.
 
VEJA - E que significa "fazer, "não fazer" e "parar o mundo"?
 
CASTANEDA - O objetivo final do bruxo é se tornar um "homem de conhecimento, mas antes ele tem que aprender a viver como um guerreiro-pirata. Ele tem que ser um impecável caçador à procura de coragem e disciplina. O guerreiro-pirata age por si mesmo, e assume a responsabilidade por suas ações. No processo de me tornar guerreiro-pirata eu encontrei poder pessoal, isto é, o poder da coragem e disciplina. Don Juan me ensinou a enxergar, ver o mundo ao invés de simplesmente olhar. Ele ensinou-me a interpretar o mundo não pelo que se apresenta na superfície, mas pela essência. Porém, antes poder enxergar e interpretar o mundo como um guerreiro-pirata, como um bruxo, tive que aprender como "não fazer", como "parar o mundo". Como você pode notar, é quase que uma taxinomia de tarefas. Para se ter o entendimento de "não fazer" é necessário explicar o significado de "fazer". "Fazer" é o consenso que torna o mundo existente. O mundo da nossa realidade é realidade porque estamos envolvidos no "fazer" dessa realidade. As pessoas nascem com uma auréola de força, poder, que se desenvolve e se entrelaça com o consenso dominante. As pessoas olham o mundo da forma como lhe foi ditada, com os olhos do consenso dominante. Por outro lado, "não fazer" é possível quando uma auréola extra de poder se desenvolve para formar a existência da realidade de um outro mundo. O guerreiro-pirata não escapa do "fazer" do mundo, mas luta dentro desta realidade, a realidade do consenso dominante, o que o auxilia na criação da auréola extra de poder. O ato de "não fazer" conduz ao "parar o mundo", que é o primeiro passo para "enxergar". O mundo da realidade ordinária, do dia-a-dia, nos parece do jeito que é por causa do consenso social. "Parar o mundo" significa interromper a corrente comum de interpretação do mundo, do consenso dominante, ou em outras palavras, parar o consenso é enxergar o mundo como bruxo, numa realidade não-ordinária. "Parar o mundo" é viver num espaço temporal mágico, enquanto que viver na realidade do consenso é viver num espaço temporal ordinário.
 
VEJA - Um bruxo é um pragmático, e o senhor mesmo se rotula assim. Qual seria a aplicação prática de "fazer", "não fazer" e "parar o mundo"?
 
CASTANEDA - Você fuma desbragadamente, como um desesperado. Eu fumava como você, e cheguei a fumar quatro maços de cigarros por dia, até que Don Juan sugeriu que eu usasse a minha compulsão para parar de fumar. Eu deveria ficar envolvido no "não fazer" de fumar. Para isso eu teria que observar o fazer de fumar. Comecei então a observar o "fazer" de levantar pela manhã e procurar imediatamente meus cigarros, o "fazer" de colocá-los no bolso, o "fazer" de apalpar o bolso da minha camisa com minha mão esquerda para ter certeza de que os cigarros lá estavam. O lugar do cigarro, o fumar de dois deles no caminho da universidade, e assim por diante, constituíam o meu "fazer" de fumar. Como eu, você pode observar o que constitui o seu "fazer" de fumar. Uma medida sistemática de fazer leva a pessoa a não executar os detalhes do ato de fumar. Para "parar o mundo" de fumar a pessoa tem que aprender a compulsivamente dizer não para o "fazer" de fumar.1 Este exemplo é grosseiramente uma aplicação dos ensinamentos, pois eu parei de fumar logo nos primeiros contatos com Don Juan, mas somente consegui "parar o mundo" da realidade ordinária depois de dez anos. A partir deste ponto Don Juan deixou de usar plantas alucinógenas como parte dos ensinamentos.

Guias para se acabar com o bom senso
 
VEJA - O senhor não fuma, não bebe e evita até café. Como então vê o uso de drogas como parte dos ensinamentos de Don Juan?
 
CASTANEDA - Don Juan usou psicotrópicos e plantas alucinógenas como um auxílio aos ensinamentos. Uma vez atingido o objetivo, estes veículos se tornaram desnecessários. As drogas são maléficas para o corpo, e não tem nenhum defeito além de uma certa qualidade que o bruxo necessita.

 VEJA - De que modo as drogas serviam de instrumento auxiliar aos ensinamentos de Don Juan?
 
CASTANEDA - O mundo como nós o vemos é apenas uma descrição, e cada item da descrição é uma unidade, o que eu chamo de "gloss" (aparência externa") Uma árvore é um gloss, um quarto ou uma sala são glosses. Nós colocamos significado ao gloss-quarto como sendo a reunião de pequenos glosses - cama, cadeira, camiseira, armário. A realidade do consenso é formada por uma corrente infinita de glosses, os quais, por sua vez são formados e interligados por pequenos glosses. Esta corrente forma, na nossa realidade, um sentido comum, isto é, esta corrente de glosses tem que fluir em uma direção pré-concebida que nós chamamos consenso ou sentido comum. Para quebrar ou interromper a corrente, o bruxo usa drogas que criam um espaço vazio na corrente, implantando uma nova direção, a direção do sentido comum ou do bom senso da realidade não ordinária (realidade da bruxaria). Sentido comum e bom senso estão diretamente ligados ao nosso corpo. Com o uso de drogas, há uma interrupção no bom senso e abertura de uma nova direção, e essa nova direção só pode ser encontrada com um guia (bruxo), pois de outra forma o uso de tais drogas é sem valor. O homem geralmente tem a ideia de gozar a vida através dos vícios. Um viciado é uma criança profissional. Interromper a corrente de glosses, parar o mundo, com o uso de drogas só pelo prazer de interromper, só pode causar dano, além de ser uma brincadeira cujo preço é caro. Uma vez que o corpo aprendeu a interromper a corrente, não há mais necessidade de auxílio para tal interrupção. A pessoa interrompe pela própria vontade.

Uma estranha psicoterapia: sentir-se morto
 
VEJA - Acha que o processo de interrupção voluntária da corrente do "bom senso" seria eficaz se aplicado à psicoterapia?
 
CASTANEDA - O sucesso de Don Juan como psicoterapeuta é impressionante. Ele me fez cônscio de que eu era uma criança profissional, que eu estava colocando muito peso sobre mim mesmo, enfatizando minha importância de pessoal, e não transformando em ações minhas fantasias. Ele me ensinou a viver para o agora, a encarar a minha morte como um fato inevitável e existente em minha vida. O conceito de morte deve ser encarado como uma realidade. Don Juan me ensinou que, se eu me considerasse como morto, nenhuma das minhas ações teria importância pessoal, e com isso eu poderia mudar, ou mudanças poderiam ser feitas e tarefas serem cumpridas. O fato inevitável de morte é muito mórbido para o homem ocidental, e em conseqüência o Ocidente procura interação social com o objetivo de ajustamento ao "bom senso".
 
VEJA - Seria correto dizer que a pessoa, em nossa realidade rotulada de psicótica, para Don Juan seria apenas a pessoa que acidentalmente interrompeu a corrente do "bom senso" e não conseguiu refazer esta corrente?

CASTANEDA - Correto. O bruxo quebra a corrente do bom senso por vontade própria. não é uma coisa acidental. Nas primeiras experiências tenho quase certeza que sem um guia teria perdido o contato com a realidade do consenso; em outras palavras, eu não seria capaz de encontrar o caminho de volta a essa realidade. O guia orienta o aprendiz a sair da realidade do consenso e a entrar na estranha realidade da bruxaria, bem como sair daquela estranha realidade e voltar a realidade do consenso. Este exercício é repetido até que o aprendiz adquira o domínio da sua própria vontade. Para o psicótico, o exercício sobre a direção de um psicólogo clínico ou de um psiquiatra resume-se a retornar à realidade do consenso, e a permanecer conformado. O bruxo, além de guia, é o modelo de "homem do conhecimento". Para Don Juan, qualquer mudança somente é possível se a pessoa praticar seus próprios ensinamentos. Novamente a filosofia "eu faço o que eu digo" prevalece.

 
VEJA - "Porta para o Infinito" menciona o uso de sonhos como um exercício no domínio e controle da própria vontade. Seria este controle da mesma natureza do domínio da própria vontade ao que o senhor acaba de se referir?

CASTANEDA - Eu menciono neste livro os diversos exercícios para controle dos sonhos, ou seja, para que a pessoa possa colocar os sonhos a seu serviço e sonhar produtivamente. Este sonhos requerem o mesmo domínio da vontade que é necessário para sair e voltar à realidade ordinária. Sonhos para um bruxo não são simbólicos, mas frutos do controle que adquire através dos ensinamentos. Ele dorme sonhando sonhos produtivos, como que uma continuação do dia a dia, ao invés de sonhar sonhos ordinários comuns, e sem controle. Aos poucos, uma pessoa consegue se disciplinar, a ponto de, sonhando, ser capaz de ver a sua própria imagem dormindo a sonhar. O caso extremo deste controle pode ser exemplificado pelo que Don Genaro afirma ser capaz - materialização de uma duplicata da sua própria pessoa. Com o controle dos sonhos a pessoa pode aumentar a sua capacidade de ação. Todas essas realidades não exploráveis da realidade do consenso formam um todo - o "homem de conhecimento".

 
VEJA - O senhor acha que nós exploramos e usamos apenas parcialmente o nosso potencial por razões inerentes à nossa educação formal?
 
CASTANEDA - A educação formal e informal do homem ocidental não dá margem a nada estranho ou diferente do consenso social. O que é fora da norma do nosso bom senso é considerado anormalidade. Também falta ênfase na noção de responsabilidade para consigo mesmo: não falamos suficientemente da responsabilidade para as nossas crianças, e por esta razão poucos deixam de ser crianças, e vivem a vida como crianças-profissionais. Explicando melhor: a criança profissional é a pessoa que precisa de carinho e é recompensada por meio de atenção dispensada a sua pessoa. Ela é auto.importante, um eterno infant terrible. Queria deixar de uma vez por todas de ser criança, mas eu era muito querido por mim mesmo, e sempre tinha uma desculpa para que continuasse alimentando minha auto-importância. Não fazia nada, não produzia nada, ações eram abafadas pelos meus planos e decisões, e pelo meu senso de importância pessoal. Até que aprendi com Don Juan a deixar de ser criança profissional e me tornei guerreiro-pirata.. Ficar sentado, esperando que me dessem tudo ou sonhando acordado com a glória da minha auto-importância, não me trouxe nada. Eu tive que ir procurar coragem e disciplina.
 
De criança profissional a guerreiro-pirata
 
VEJA - O senhor vive como um bruxo, isto é, uma vida de anonimato, enquanto o seu trabalho é público e de muito sucesso. Qual é a satisfação pessoal que resulta deste aparente antagonismo entre autor e pessoa?
 
CASTANEDA - Minha satisfação vem de escrever impecavelmente e de apresentar minha pessoa à luz da verdade. Eu realmente não vejo antagonismo, pois minha vida pessoal é um reflexo da minha obra. Novamente afirmo que faço aquilo que digo, pratico aquilo que prego. E uma vez que sou honesto comigo mesmo, não me importa o que e como a galeria pensa ou reage. Desta forma, sou livre dos altos e baixos. Veja o exemplo de Timothy Leary, o guru do ácido lisérgico. Ele é um exemplo típico de excesso de auto-importância. Lá pelas tantas o peso se tornou demasiado e ele teve que pagar o preço extremo. Muitos são os escritores que pregam mas não seguem a própria pregação, muitas são as pessoas que promovem um corpo forte e uma mente sadia, mas acabam destruindo gradativamente o próprio corpo e mente. Don Juan era o modelo que fazia e praticava tudo aquilo que era colocado como tarefa para mim, durante todos os anos da aprendizagem.
 
VEJA - O senhor mencionou o modelo de Don Juan, mas foi também exposto a um outro modelo: o consenso social. Como alia esses modelos em sua vida?
 
CASTANEDA - O modelo de Don Juan me deu os parâmetros de uma realidade diferente da do consenso social. Outro modelo me conduzia ao eterno enfant terrible. Ao longo dos ensinamentos, abandonei este último. Um modelo me conduzia à criança profissional, e outro ao verdadeiro guerreiro-pirata. Quando a pessoa tira o senso de auto-importância do seu caminho e toma a consciência de que o homem que puxa a corda e trama os pauzinhos é tão humano quanto eu ou você, ela pode atingir aquilo que quiser. A pessoa pode ser ultra-inteligente e cheia de recursos, mas se somente espera que as coisas lhe venham às mãos, quando não é atendida pelo mundo cai num estado de ódio, remorso e medo. O guerreiro-pirata não tem medo, ele não espera que as coisas venham até ele. Ele age, cumpre suas tarefas, e ao mesmo tempo não se preocupa com as conseqüências.
 
Notas

1Em uma entrevista mais recente, concedida a Carmina Fort, Castaneda relata que Don Juan, para fazê-lo parar de fumar, certa vez levou ao deserto, avisando que iam passar lá vários dias. Castaneda fez um estoque de cigarros, com várias caixas embrulhadas. Enquanto dormiam, os cigarros sumiram. Castaneda, desesperado, procurava uma explicação. Don Juan disse que talvez tivesse sido os lobos. Rondaram as habitações próximas mas não acharam nada para Castaneda fumar. Esse acontecimento foi decisivo para ele largar o mau-hábito (nota do redator).

Sagrado Feminino: Kali.

Justamente hoje (08/03//2024) é interessante lembrar de um arquétipo do feminino que é fundamental, não só pela sincronicidade que está rola...